Vinte e um de abril de 1960 – inauguração de Brasília como Capital Federal. Os alunos internos do Colégio Evangélico (presbiteriano) 15 de Novembro (em Garanhuns, PE) foram liberados naquele feriado. Em breve eu completaria 16 anos. Sento-me na cama, no quarto 3, e medito, reconhecendo meu estado de pecaminosidade, a perdição eterna, a salvação oferecida pela soberania e pela graça de Deus na morte de Cristo na cruz e a necessidade de arrependimento, entrega de vida e confissão dele como Senhor e Salvador, pela fé concedida pelo Espírito Santo. Ajoelho-me ao lado da cama e, não resistindo à graça, faço uma oração em decisão culminante da conversão. Deixo de ser um religioso para me tornar um cristão. Paz profunda. Certeza de salvação. Deixo o prédio do colégio e vou para o parque Ruben van der Linden (o “Pau Pombo”) ler um jornal e contemplar a natureza.
Começava uma nova vida, resultado de uma peregrinação. Nascera em um lar religiosamente misto: um pai médium kardecista e uma mãe católico-romana. Estudara o catecismo do padre Álvaro Negromonte, fizera primeira comunhão na Paróquia de Santa Maria Madalena, em União dos Palmares, AL, com a figura austera e erudita do monsenhor Clóvis Duarte de Barros, e fora crismado pelo arcebispo de Maceió Dom Ranulfo Farias, auxiliado pelo coadjutor Dom Aldemo Machado. Um primo da minha mãe, Teófanes Augusto de Araújo Barros, era cônego da Catedral, e outro primo, Gerilo, era aluno do Seminário Maior.
Minha vida de criança e adolescente se centrava na igreja: missas, novenas, procissões. Influência maior vinha de minha avó materna, Veríssima (Lissú). Aos 13 anos fui autorizado a assistir à primeira sessão espírita, tendo meu pai como médium e minha avó como espírito baixante (muito “familiar”). Comecei a ler a literatura espírita e a ocasionalmente frequentar sessões pelos cinco anos seguintes. Aos 14 anos, três impactos: a) a leitura de uma biografia de Maquiavel como embaixador no Vaticano abala minha visão do papado e da própria Igreja Romana; b) a leitura de uma biografia de Lutero escrita por um historiador reformado francês me faz descobrir um novo herói da fé; c) um marceneiro adventista, Josué Clementino, me faz abrir uma Bíblia (edição católica) em Êxodo 20 e me desafia a fazer um curso bíblico por correspondência (escondido dos meus pais). Um colega de classe, José Amorim Feitosa, me leva a conversar pela primeira vez com um pastor evangélico, o batista Gamaliel Perruci, sobre graça e lei. Continuava assíduo à igreja, comungando diariamente durante as férias e tendo proveitosas conversas com o meu pároco, lendo da sua biblioteca. Terminara o ensino fundamental (curso ginasial) e optara pelo então curso clássico para o segundo grau. A providência divina me conduziu ao colégio presbiteriano, com cultos diários, aulas de Bíblia e a convivência com os “candidatos ao ministério”.
Passo a frequentar a Igreja Presbiteriana Central (rev. Henrique Guedes), estudando na escola bíblica dominical sobre as viagens de Paulo e tendo como professor o advogado Urbano Vitalino (o avô). Prega na igreja e no colégio o rev. Antonio Elias, de Niterói, RJ, um evangelista reformado de “coração aquecido”. Foi o último “empurrão do céu” para a minha decisão. Naquele dia, disse: “Vou ser um crente na Igreja Católica”. No ano seguinte (1961) estou no Recife, estudando com os jesuítas no Colégio Nóbrega: missa nas sextas, praia aos sábados, cinema aos domingos e… sessão espírita nas quartas. Vou a uma igreja presbiteriana “burguesa” e não me sinto bem com uma mocidade fútil. Fastio da alma. O marceneiro alagoano me envia um diácono e o presidente da mocidade da Igreja Adventista: conversa, orações, lição da escola sabatina, cultos. Grande ajuda espiritual, mas lhes falo que tenho discordâncias e que não me filiaria àquela denominação, à qual sou sempre grato.
Termino o segundo ano do curso clássico e vou de férias para a casa dos meus pais. Intenso período de reflexão, que me leva a três decisões importantes: a) diante da incompatibilidade entre os ensinos da Bíblia e os de Kardec, deixaria de frequentar, para sempre, sessões espíritas; b) diante da minha descrença na maioria dos seus dogmas caracterizadores, deixaria a Igreja Romana; c) como não deveria viver a fé isoladamente, me filiaria a uma igreja evangélica, de preferência histórica, litúrgica e não-legalista. No Recife daquela época (1962), a Igreja Anglicana só tinha cultos em inglês e uma Igreja Luterana (IECLB), em alemão. Perto da casa dos meus avós paternos (Manoel e Josefa, “mãezinha”) ficava a Igreja Luterana do Brasil (IELB), com cultos em alemão e em português. Congrego-me e estudo com avidez. Dia 31 de outubro de 1963, Dia da Reforma (19 anos, aluno de ciências sociais na Universidade Católica e de direito na Universidade Federal), pelo rito da confirmação, professei publicamente a minha fé e me tornei um protestante de carteirinha.
Desligo-me da Igreja Romana em plena efervescência do Concílio Vaticano II, cujos documentos finais eu acompanhei e estudei. Passo doze anos na condição de aluno e, depois, professor na Universidade Católica de Pernambuco (dos jesuítas), exposto às encíclicas sociais pontifícias e à filosofia solidarista de Gabriel Marcel, Jacques Maritain e Emmanuel Mounier. Rompo com a eclesiologia e a soteriologia romanas, mas retenho muito da sua doutrina social. Ao término dos cursos de ciências sociais e direito, entro em um dilema existencial: advocacia, carreira diplomática, pós-graduação no exterior, ordenação ao pastoreio de uma igreja luterana, casamento?
Convidado por Paul Little para assistir à Conferência Missionária de Urbana (1967), ouço John Stott expor a Segunda Carta a Timóteo e sinto um chamado para o ministério, mas não sei qual. De volta ao Brasil, recebo um convite para ser assessor (obreiro) da Aliança Bíblica Universitária (ABU), que foi um marco na minha vida quando eu, ainda estudante, havia sido discipulado pelo missionário batista inglês Dionísio Pape. Um mês depois, sou convidado para lecionar na Universidade Católica. É a resposta de Deus: profissão e ministério na academia.
Estou com 23 anos. Permaneço mais de dez anos como missionário da ABU, cobrindo, inicialmente, uma área que vai de Manaus a Salvador. Em 1969, aos 25 anos, me caso com Miriam (já são 41 anos de casados). As portas do magistério se escancaram. Recebo propostas do colégio Presbiteriano Agnes, Americano Batista, Eucarístico (católico), da Faculdade Frassinetti do Recife e do Seminário Presbiteriano do Norte. Aprovado nos concursos para professor de ciência política nas Universidades Rural e Federal de Pernambuco, fecho o escritório de advocacia, para tristeza do meu pai, e suspendo a ordenação pastoral (permanecendo como evangelista).
Aos 26 anos, por sugestão de Neuza Itioka e a convite de Ricardo Sturz (pai), participo do processo de fundação da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL) como “caçula”. Em 1970, compartilho da histórica 1ª Consulta de Cochabamba, onde integro a comissão executiva por sete anos. Além disso, participo dos CLADEs 2 e 3 — o primeiro, em Huampani, no Peru (fiz parte da comissão diretora), e o segundo, em Quito, no Equador.
Por dez anos escrevo na coluna evangélica dominical do Jornal do Commercio, de Recife. O apoio de Richard Sturtz à minha publicação de “Cristo na Universidade Brasileira?” torna-me um escritor (1972).
Aos 30 anos (1974), estou no Rio de Janeiro cursando mestrado em ciência política na Cândido Mendes (IUPERJ) e servindo na ABU — Região Leste. Sou convidado para participar do Congresso de Lausanne, onde tenho a liberdade de falar e integrar a Comissão de Convocação. Em seguida, sou eleito membro-suplente de Faninni e Gesiel Gomes na Comissão de Continuação, depois Comissão de Lausanne para a Evangelização Mundial (LCWE), por quatro anos. Com a constante falta de titulares, compareço a todas as reuniões e participo da maioria das consultas da fase fecunda (1974–1982) — responsabilidade social; evangelho e cultura; estilo de vida simples — e do Congresso de Pattaya, na Tailândia. No Congresso Missionário (Curitiba, 1976) publico o livro “Uma Bênção Chamada Sexo”. Sou o primeiro autor evangélico a se aventurar (a levar pedradas) pelo tema. Em seguida, publico “O Cristão, Esse Chato!”
De volta a Recife, passo a ocupar cargos na administração universitária, como coordenador, chefe de departamento, diretor de centro, membro dos conselhos superiores. Sirvo como obreiro na ABU e como membro dos Gideões Internacionais. Sou convidado para integrar a Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial (WEF), subcomissão Ética e Sociedade, por quatro anos. Em 1978, por sugestão de amados irmãos, encerro minha abençoada década de obreiro da ABU. Ajudo a criar um movimento evangélico de conscientização política (MCDC) e preparo o livro Cristianismo e Política.
A convite do pastor presbiteriano João Campos de Oliveira, coopero por três anos em um programa de televisão. O fato de ter militantes políticos na família — meu pai foi vereador e presidente de sindicato empresarial — e de ter participado da política estudantil, sindical e partidária leva-me à candidatura a deputado estadual (com a Lei Falcão e o voto vinculado) como evangélico não-marxista contra a ditadura militar — saio do gabinete e vou à escola das ruas, com os riscos da ocasião. Por doze anos sou abençoado como membro da Igreja Luterana (IELB), à qual devo minha formação no pensamento da Reforma e minhas convicções doutrinárias ortodoxas. Questões periféricas pontuais (germanismo cultural, ceia restrita, regeneração batismal, governo não-episcopal), depois de um período de discernimento, me levaram à desvinculação da IELB e a uma transição ao anglicanismo (1976). Aos 32 anos, já sou influenciado por Jonh Stott, C. S. Lewis, J. I. Packer e Michael Greene (missões aos nacionais no Nordeste). Continuo a viajar (1978–1997), pelo país e exterior, a convite de várias denominações e instituições.
Sou grato a Deus por me ter permitido três vidas em uma: a profissional, a política e a ministerial. A troca da advocacia pelo magistério universitário melhor viabilizou a compatibilização entre profissão e ministério. Como profissional das áreas de pesquisa e ensino, sempre me vi dando o melhor de mim, com ética, e ao mesmo tempo sendo um missionário ao mundo universitário. Nas Universidades Federal de Pernambuco (UFPE) e Federal Rural de Pernambuco, ocupei a maioria dos cargos e funções, inclusive nos conselhos superiores. Coordenei o mestrado em ciência política e dirigi o Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Aposentado, trabalhei como voluntário cinco anos e, ao completar quarenta anos que ali entrara como calouro, fechei o escritório com um sentimento de realização pessoal e dever cumprido. Muitas vezes participei, como dublê de professor/pastor, de efemérides religiosas no campus. Essa missão para o mundo me levou a integrar a Academia Pernambucana de Educação e Cultura, o Rotary Club e a Academia Pernambucana de Ciências Morais e Políticas.
Na vida política, o fato de ter parentes paternos e maternos militantes de várias frentes, levou-me a participar da primeira greve aos 12 anos. Fiz parte do grêmio do colégio. Participei de uma diretoria da União dos Estudantes Secundaristas de Alagoas (UESA), do Centro dos Estudantes Secundaristas de Pernambuco (CESP), do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da UFPE, de diretórios e executivas (nos âmbitos municipal e estadual) de partidos. Abracei uma candidatura profético-pedagógica a deputado estadual (na época da ditadura militar), outra candidatura a vice-prefeito, uma assessoria a prefeito e a deputado federal. Participei ainda da fundação de um sindicato e, por fim, de movimentos sociais — inclusive fui um dos fundadores do Movimento Evangélico Progressista (MEP). Cumpri meu dever ao integrar a coordenação nacional das campanhas (1989, 1994) de Luiz Inácio Lula da Silva entre os evangélicos. Partidos e organizações foram canais históricos do exercício da cidadania responsável. Saí do PMDB quando esgotou seu projeto, com a promulgação da Constituição de 1988, e do PT com minha eleição ao episcopado (além da sua descaracterização). Não sou filiado a partidos, mas a sindicatos e associações civis. Parafraseando Nelson Rodrigues, tenho sido um “pastor de passeata”.
Na vida religiosa, tive formação cristã e fui vocacionado desde a infância. Converti-me na adolescência, e seguiram-se filiação e púlpito. Tinha visão missionária desde quando era estudante universitário. Na igreja exerci das mais humildes tarefas às maiores responsabilidades — foi parte do meu processo de aprendizagem. O privilégio de ser ministrado por heróis da fé, a literatura a que fui exposto, a honra de ser agraciado pela Providência com a presença nos principais congressos nacionais e internacionais da minha geração fazem-me confessar a graça e a misericórdia de Deus. Desde a Igreja Romana, tenho sido um “cristão credal”, afirmando cada artigo dos Credos Apostólico e Niceno. Desde a Igreja Luterana, tenho sido um cristão confessional: afirmando cada ponto convergente das confissões de fé da Reforma. Um ortodoxo que procura ser ortoprático. No protestantismo, sempre me vi como um evangélico (evangelical) — anunciando a expiação na cruz, o novo nascimento, a santidade e o imperativo missionário. Posicionamentos político-ideológico-partidários e o uso de ferramentas da filosofia e das ciências humanas para melhor compreender e obedecer às Sagradas Escrituras me levaram, muitas vezes, a ser tido como “liberal” por conservadores e como “fundamentalista” por liberais.
Há 34 anos sou membro da Igreja Anglicana — 26 anos como ministro ordenado (diácono, presbítero = pastor) e aproximadamente 13 anos como bispo. No anglicanismo fiz uma síntese pessoal entre um catolicismo sem romanismo e um protestantismo sem sectarismo/legalismo. Ordenei quase cem pastores. Abri um grande número de frentes missionárias e congregações – tenho recebido uma média de quinhentos novos membros a cada ano. Mantemos obras sociais e uma mensagem integral do evangelho. Porém é também aí que tenho, nos últimos anos, vivenciado os momentos mais tristes da minha vida. Por um lado, sofri a tragédia de cismas motivados por projetos pessoais e, por outro, o confronto com heresias, que me fez perder amizades pessoais – algo que nunca tinha vivenciado no espaço secular. O anglicanismo, amplamente ortodoxo em seus 165 países, tem passado por uma crise dolorosa devido ao fato de suas províncias do espaço euro-ocidental (como acontece com outros ramos históricos) e alguns satélites na periferia terem sucumbido ao sopro iluminista-racionalista do “espírito do século”. Tal crise deve-se ainda à adoção de um relativismo e de uma “inclusividade ilimitada” (sem doutrinas e padrões de comportamento), representados pelo liberalismo revisionista pós-moderno, que tem como uma das decorrências o advogar a agenda GLSTB (homossexual). Fui difamado e processado, e sofri um nunca imaginado martírio no interior da própria igreja. Continuo, porém, ainda vivo, ministrando, assistido por meu Senhor!
Nota
Artigo publicado originalmente em três partes em março, maio e julho de 2010 na revista Ultimato.